23.3.10

Uma casa portuguesa


Foto retirada daqui


Vivia-se o séc. XIX do milénio anterior a este quando nasceu uma casa portuguesa. Poderia apelidá-la de simples se não se desse o caso do adjectivo genuína lhe ajustar ainda melhor. Era uma casa alta, esguia, despojada de quaisquer luxos, com paredes tortas e chão de madeira gasta. Tinha somente duas janelas, uma na cozinha virada para o rio, o que a fazia sofrer de cócegas provocadas pelas gaivotas que nela roçavam a ponto de, por vezes, não se ouvir mais nada do que um gargalhar incessante, e outra na sala, virada para a avenida de árvores sumptuosas que davam àquela um ar majestoso e a tornavam tão vaidosa que os vasos que a ornamentavam viam-se obrigados a estar sempre floridos. Para além das duas janelas, tinha quatro quartos, dois eram pequenos e os outros dois eram pequenos no superlativo absoluto. Todos sofriam de uma interioridade arquitectónica que os poderia ter tornado pouco dados à simpatia não fosse o facto de quem lá pernoitava ser suficientemente alegre para os tornar aprazíveis. Em todos eles, as paredes sofriam de hematomas provocados por pregos ferrugentos que sustentavam retratos kitsch de Jesus Cristo ou da Virgem Maria.

A casa desta história era habitada por uma família que deixou descendência suficiente para perfazer os dedos de duas mãos e ainda ter de se acrescentar dois dedos do pé. A prole que lá nasceu e cresceu foi, com o correr dos anos, saindo para espaços seus e a casa desta história, outrora amontoada de vida humana, foi-se esvaziando até somente resistirem três filhas que apenas a abandonaram quando, com cerca de 90 anos, se viram forçadas a ir para outro local, vulgarmente apelidado de paraíso, onde, segundo consta, lhes estariam reservados os melhores quartos com janela do éden.

As três irmãs trataram de dividir a casa à sua maneira, não havendo qualquer parte desta que fosse propriedade comum, excepção feita à única torneira que por lá deitava água. Foram então divididos os quartos, os armários, as prateleiras, os copos, os pratos, os tachos, os fogões, as zonas das mesas, as cadeiras, as cordas e as molas da roupa, os alguidares, os detergentes, os utensílios de limpeza, os alimentos, as plantas e tudo o mais que pudesse existir numa casa. Esta divisão, que testemunhava uma vida em comunidade sem partilha de objectos materiais, foi o ideal encontrado para uma coexistência sem sobressaltos, onde cada uma geria o que lhe pertencia, conforme podia, e sem se meter na vida alheia. Cada uma das irmãs cozinhava no seu fogão a sua própria refeição, sentava-se na sua cadeira, na sua ponta da mesa, comia na sua própria loiça que seguidamente lavava nos seus próprios alguidares. A vida de cada uma não se metia com a das outras.

Como neta de uma das três irmãs, cresci nesta casa durante a minha infância. A minha ingenuidade infantil não me permitia, na altura, aperceber devidamente da peculiaridade daquele modo de estar. Tinha perante mim a prova de que a cumplicidade entre várias pessoas pode conhecer o seu expoente máximo sem ser necessário compartilhar algo de físico. Feliz por me encontrar entre aquelas paredes (o quarto da minha avó era o maior de todos e o único com dois quadros kitsch) só a idade adulta me permitiu reconhecer que naquele lar o castiço e o genuíno se sentavam connosco à mesa. Percebo agora que nesta casa apenas se partilhava o imaterial, o lado espiritual, aquele que não se vê mas somente se experiencia tal como o são as conversas e os risos, os jogos e as brincadeiras, os afectos e as gargalhadas, as lágrimas e os abraços, as múltiplas e inesgotáveis aprendizagens. No que diz respeito a amor, cumplicidade, respeito e felicidade aquela casa nunca foi atípica. Em tudo o resto abundam estórias e relatos que se aproximam da excentricidade mas que me fazem recordar a infância como algo pertencente a um mundo mágico que amadureceu com o crescimento mas o qual não me importava de revisitar.

Nota de Autor:
Este é um relato de homenagem à minha avó e às minhas duas tias-avós das quais guardo recordações que figuram na minha memória mais privilegiada. Foi dos textos mais difíceis que escrevi e com ele soube que nunca terei habilidade literária para transpor para escrita a riqueza daquela casa e daquelas pessoas.

1 comentário:

  1. ... recordar é viver. Pode parecer lugar comum, mas é bem verdade!!

    E já fiquei a conhecer mais um pouco de ti :

    Beijo

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