20.6.11

Porto Santo: ouro sobre azul

Não sou propriamente uma pessoa apreciadora de resorts. Não acho grande piada a viajar agarrada a uma miopia que não permite conhecer mais de um local do que as quatro paredes de um hotel, ainda que estas possam ser magníficas. Nem tão pouco sou fiel adepta de gastar horas de avião para aterrar numa praia sem que esta me ofereça um pouco mais do que águas quentes e buffets de encher a barriga. Mas, a necessidade imperiosa por uma pausa, em que o dolce fare niente se fizesse sentir a todo o momento, levou-nos a querer um destino onde o sol e a praia nos acompanhassem enquanto dávamos ordem de soltura a toda a nossa inércia. A decisão recaiu num destino nacional, ainda que afastado por alguma imensidão oceânica; numa ilha pequena, ainda que repleta de pequenos tesouros capazes de seduzir mesmo os mais distraídos; num resort fechado ainda que suficientemente encantador para não sentir os efeitos da clausura. Refiro-me ao Porto Santo, a ilha vizinha da “pérola do Atlântico” que, podendo não ser pérola, é, com certeza, tão preciosa quanto a sua parceira de arquipélago. Rendi-me, portanto, aos efeitos benéficos de uma forma de férias que se afasta do meu habitual mas que provou ser capaz de deleitar os meus sentidos.



Porto Santo é uma pequena ilha com cerca de 11 km de comprimento e 6 km de largura encontrando-se a cerca de 90 minutos de avião de Lisboa e a 10 minutos do Funchal. É conhecido como sendo a ilha a dourada devendo essa cor à fina areia que cobre os seus 9 km de praia. A areia, de tonalidade amarelada, torna-se verdadeiramente dourada quando a posição solar assim o ajuda, revelando ao entardecer um verdadeiro ouro sobre o azul das suas águas. O mar é outro grande atractivo da ilha, límpido, de um azul que vicia e inebria, com uma temperatura aprazível que permite imergir sem arrepios e nadar até que o corpo o permita embalado pelas ondas fieis companheiras daquela água salgada.




Apesar das praias serem as grandes mobilizadoras do turismo na região, ainda é possível encontrá-las quase desertas uma vez que o turismo se mantém pouco explorado apesar do número de hóteis ter aumentado significativamente nos últimos anos. A ilha oferece ainda outras possibilidades de distracção tais como golfe, hipismo, passeios de bicicleta, caminhadas e desportos aquáticos. Tudo isto num clima ameno e com pouca amplitude térmica ainda que algo ventoso na praia mas nada que um pára-vento não resolva para que tudo volte a ficar perfeito.



Nós optámos pelas caminhadas, habituados que estamos a fazer da marcha o meio privilegiado de conhecer locais. Visitámos a Vila Baleira que alberga o centro da ilha onde se encontram as lojas de comércio, os principais serviços e a Câmara Municipal. Um pequeno local, bem arranjado, pitoresco e engalanado para receber a Festa de S. João ou não fossem os santos populares uma marca festiva de todo o território nacional.



Numa das extremidades da ilha explorámos a ponta da Calheta, que marca o fim da ilha e o encontro com o mar que abraça a costa rochosa.



Para além das passadas no asfalto, deixámos quilómetros de pegadas na areia feitas com uma sensação de tranquilidade que só o som do mar oferece.


Tendo iniciado este texto referindo algum desinteresse por resorts, não posso deixar de dizer o quanto fiquei agradavelmente surpreendida com o hotel Pestana Porto Santo pela simpatia de todos os colaboradores, pelo irrepreensível serviço e excelentes infra-estruturas e por nunca ter me ter dado a conhecer monotonia.



Recomendo este hotel mas acima de tudo recomendo Porto Santo para que possam comprovar que a expressão “ilha dourada” não tem nada de hipérbole.


28.3.11

Roma revisitada

Roma recebeu-nos com honras de chuva. O avião pousou sob o olhar cinzento de um céu que durante todo o dia chorou. Apesar de desanimador, e fortemente limitador da liberdade de escolha do que visitar, a verdade é que o mau tempo não foi capaz de fazer frente à motivação da descoberta, por isso, sem grandes delongas, e protegidos da melhor forma que encontrámos contra a àgua que nos atingia o corpo, iniciámos os primeiros passos pela cidade. Roma já teve o estatuto de capital europeia com maior número de turistas. Não sei se mantém esse lugar de estrelato mas, a avaliar pela quantidade de massa humana que abunda nas suas estreitas ruas, fazendo o adjectivo caótico parecer um eufemismo para descrever o seu centro histórico, tudo parece indicar que a fama ainda se mantém. Foi a pensar nessa imensidão de pessoas inapropriada para quem, acabado de chegar, aprecia ambientes mais relaxantes que, esquecendo por momentos os locais de referência, procurámos percorrer as ruas na procura de uma Roma menos revelada pelos guias turísticos. E ela existe. Ninguém me disse, eu própria destapei o lençol que cobre alguns locais de Roma desconhecidos ainda para muitos e pude, assim, comprovar que o lado alternativo desta cidade é capaz de oferecer locais sossegados e repletos de espaço livre, ideais para olhos que preferem ver singularidades a amontoados de pessoas.



Um desses exemplos é o museu Maxxi, dedicado à criatividade e laboratório da experimentação artística que não pretende ser somente um espaço de exposição mas também de inovação cultural. Além de estar situado num edifício de 27 000 m2 de arquitectura moderna, contrastante com os tons e com o estilo da Roma clássica, é um espaço urbano que enche os olhos e que cativa qualquer máquina fotográfica. O seu conteúdo é exemplar, equivalente ao de uma Tate Modern ou de um MoMA, e encontra-se exposto em espaços de múltiplos ambientes que convivem em sequências coerentes e harmoniosas. Aprovadíssimo, ainda mais depois de ter degustado o seu delicioso brunch tomado num espaço amplo e cheio de luz.







Mas quem vai a Roma tem de ir ao seu centro histórico e por isso depois destes momentos iniciais marcados pelo afastamento da desordem romana, ganhámos, finalmente, coragem para acariar os afamados locais do seu centro histórico. Percorremos a Via Veneto, descemos os degraus da Piazza di Spagna, subimos a Via del Babuíno e estacionámos as pernas na Piazza del Popolo enquanto o ar se enchia com as nossas gargalhadas por vermos as centenas de pessoas que por ali deambulavam, algumas à laia de passeio, outras atraídas pelas inúmeras lojas de comércio, capazes de esvaziar qualquer carteira e produzir um mundo de sonhos. Não foi fácil gerir a nossa caminhada por entre os outros corpos de passos apressados ao mesmo tempo que fugíamos da chuva evitando goteiras, pingos e outras fontes de água.




Por falar em fontes, no sentido literal do termo, e depois de termos calcorreado a Via del Corso aguardámos pela presença eloquente da Fontana di Trevi que seria um monumento grandioso não fosse o facto de ser ofuscada pela imensidão de gente que, de moeda na mão, procura, segundo a tradição, concretizar o desejo de voltar novamente áquele local. É tarefa quase impossível fotografá-la sem que algum braço, mão ou cabeça se intrometam, insidiosamente, no desejado retrato.






O rio Tibre foi atravessado para ir ao Estado do Vaticano porque visitar Roma e não ver o Papa, ou pelo menos tentar fazê-lo, seria uma afronta a todos os familiares e amigos que, ao saberem que viajaríamos para a capital italiana, imediatamente nos perguntaram se iriamos ver o máximo representante da igreja católica. Pois bem, procurámos não defraudar as expectativas e eis-nos numa manhã solarenga em frente à Basílica de São Pedro (com mais uns milhares, é certo) a olhar avidamente para a janela que alberga os discursos papais. Não vimos o Papa nem vimos a capela sistina, pois a nossa paciência fugiu para longe assim que avistou a fila para entrar, mas gostámos de ver a grandiosidade da Piazza de San Pietro, a singularidade da Guarda Suiça e a quantidade de objectos para venda que ostentam a cara do Papa actual e do anterior, fazendo jus aos mais variados gostos. Mas este lado do rio não acolhe somente o apogeu do catolicismo mas também outros espaços menos ortodoxos e bem mais mundanos, aglomerados na zona de Travestere, tais como galerias de arte, livrarias, bares, restaurantes e outros locais de um comércio hip que vale bem a pena uma visita demorada.



Mas o Colisseo é, sem dúvida, o ex libris da cidade, imponente como só ele sabe ser e com um dourado guarnecido pelo pôr-do-sol que lhe confere uma fotogenia fantástica e um vício para retinas sensíveis. É olhá-lo, olhá-lo até o deixarmos de ver para nos deliciarmos com a imponência da Piazza Venezia e do seu monumento a Victor Emanuel. Em Roma tudo acontece como uma sucessão de visões magníficas que quase se atropelam para conquistar a atenção dos ociosos. Não há momentos mortos para os sentidos pois tudo surge numa sequência de deleite visual, olfactivo e, muito principalmente, gustativo com todos os capuccinos, gelados, pastas e tiramisus que fazem da comida italiana uma referência gastronómica mundial.




Os tons ocres da cidade encontram contraste nos seus magníficos parques, apaziguadores da agitação da cidade e que nos fazem conciliar com a natureza alheando-nos do facto de estarmos no meio de uma cidade ampla e em contínuo movimento. Passear pela exuberância de vegetação, aproveitando miradouros, palacetes e espaços para degustar excelentes paninis, deverá fazer sempre parte do percurso de quem visita Roma.


15.3.11

Sol nas gavetas



A pequena amostra de sol que hoje aqueceu as minhas janelas e me permitiu sucumbir ao dolce fare niente numa esplanada, enquanto os meus olhos mergulhavam na paisagem de um rio detentor de um azul que é só dele, foi mais que suficiente para me impacientar pela chegada dos dias de Primavera. Já só me apetece que o calor invada as minhas artérias e me entre de rompante pela casa para que o possa fechar hermeticamente nas minhas gavetas. Tenho tudo pronto para o receber, gelados que não me saem da cabeça, vestidos com estampados florais, espreguiçadeiras na varanda ansiosas por corpos indolentes, orquídeas a quererem florir, pés implorantes por grãos de areia, viagens planeadas que exigem cabelos ao vento, melodias de concertos de Verão.

Começa-me, verdadeiramente, a aborrecer não poder sair de casa sem um casaco, não conseguir abandonar o edredão, não deixar de piscar o olho à manta que ainda se aninha no sofá. Quero libertar-me destas amarras que amenizam o frio e amar perdidamente as blusas de algodão que permitem que a pele se exiba, adorar apaixonadamente as sandálias que deixam que os pés se vejam, sorrir perante o vento que entra no carro conduzido de janelas abertas. Assim, enquanto o sol não passa de pequenas amostras, que por enquanto apenas nos relembram que a vida com ele pode ser muito boa, vou sonhando com a sua presença, enquanto me deixo embrenhar pela exuberância da natureza que me rodeia e que, tal como eu, já anseia pelo astro rei nas suas gavetas.

10.3.11

Aprender a aprender!

É uma verdade que custa assumir, a de que a iliteracia e o analfabetismo constituem uma realidade nacional. Apesar de todas as (novas) oportunidades impulsionadas pelos governos (defensáveis ou não, pouco importa para este texto) a verdade é que as estatísticas nos continuam a empurrar para um lugar de fim de fila no que às qualificações e ao abandono escolar diz respeito. E, apesar de ser confrontada diariamente com este contexto inquietante, quando vejo na televisão jovens que não sabem ler nem escrever, sequer, o seu nome, perpetuando uma herança familiar de alheamento atroz pelo mundo que os rodeia, isso é coisa para, ainda, me conseguir lançar uma considerável dose de perplexidade. Sei, no entanto, que há realidades que justificam o afastamento da escola, existindo quotidianos, tão repletos de dificuldades, que os números e as letras são empurrados para longe das suas prioridades. Mas sei também que para aprender é preciso querer, é preciso atentar, é preciso instalar a curiosidade. E o que mais me custa não é quem não teve oportunidades para aprender mas sim quem, não tendo aprendido, não vê nisso mal nenhum. «O pior cego é aquele que não quer ver», já diz o ditado popular que assenta na perfeição nesta atitude depreciativa perante a aprendizagem.

A aprendizagem ao longo da vida é o paradigma de formação de um estado europeu que se quer qualificado, competitivo e modernizado. Modelos políticos, sociológicos e psicológicos à parte, pois este blogue vive somente da minha perspectiva pessoal de mero senso comum, sou defensora acérrima de todas as aprendizagens que possam solidificar o desenvolvimento intelectual do indivíduo. Talvez seja por isso que nunca compreenda o argumento tipicamente utilizado, e a fazer manchete nos dias de hoje: «Para que é que estudei tanto se ganho o mesmo de quem estudou menos do que eu?». Acho legítimo que se defenda que, a um maior nível educacional, corresponda uma resposta social que actue como mecanismo de reforço da motivação. Já há muito que se conhecem as teorias do condiconamento pavloviano e dos efeitos da motivação no comportamento humano, mas existe todo um manancial de estímulos sociais que justificam as mais-valias do aprender para além do já gasto, e no fundo pouco lógico, argumento do vencimento ao final do mês.

Os vencimentos ganham-se e perdem-se; aumentam e diminuem; mudam com as conjunturas, com os mercados, com as balanças comerciais. Aprender é sempre ganhar; ganhar mundo interior; ganhar hipóteses de ir mais além, de subir as probabilidades para cada uma das jogadas da vida; é aumentar os graus de liberdade que ditam a actuação de cada um; é ver para além de olhar, é ouvir para além de escutar. Posso parecer acusar excesso de demagogia, ingenuidade, e até de romantismo, mas não acho, de todo, que esses juízos se me ajustem. Acredito que haja descrença na sociedade, cansaço pelas dificuldades de um país em desalento, desconfiança nas estruturas que nos sustentam. Mas não há maior estímulo do que aprender para melhor decidir, não há melhor resposta social do que estar informado para melhor agir. Aprender é sempre o melhor dos investimentos. Ainda que os números do desemprego não o demonstrem, ainda que os salários nacionais sejam vergonhosamente inferiores a outros países com o mesmo custo de vida, ainda que a precariedade laboral pareça ser um conceito partilhado e amplamente disseminado, ainda assim, para mim, nada justifica forçar o mundo interior à mesma pobreza imposta por uma sociedade desigual.

16.2.11

Eu, hipocondriaca, me confesso!


Foto da capa do livro : Hipocondria - Nove Vidas Atormentadas de Brian Dillon

Agora que sei que o controverso Charles Darwin sofria de hipocondria, e que ainda assim conseguiu com o seu Beagle ir para o outro lado do mundo construir a teoria da evolução das espécies, estou muito mais confiante de que esta doença não me roubará a imaginação em troca da loucura. Sabendo agora que nomes sonantes da nossa história, passavam os dias a interpretar sinais e sintomas do seu corpo e mesmo assim foram capazes de desenvolver actividades notáveis, deixa-me uma sensação de alívio por constatar a possibilidade do meu legado não ser somente gavetas cheias de exames clínicos ou caixas repletas de medicamentos. Posso, ainda, ter esperança, de que serei capaz de deixar ao mundo mais do que isso. Até então, achava que esta mania me privaria de alcançar os píncaros da criatividade, a epifania intelectual, o pináculo da minha veia artística, uma vez que passava o tempo a tentar convencer o meu próprio cérebro de que as tonturas de hoje, a dispepsia do dia anterior e a taquicardia da outra semana, não eram fruto de uma qualquer doença grave e incurável mas antes reflexo de uma personalidade ansiosa e preocupada, em demasia, com o funcionamento do próprio corpo. Ora isto desgasta, consome, cansa, rouba neurónios que poderiam estar dedicados, em exclusivo, a algo mais produtivo e interessante do que aumentar a lista de doenças que conhecemos.

Ser hipocondríaco não é fácil. É saber, sem ter passado pela aprendizagem de medicina, uma série de coisas que as pessoas, ditas normais, nem fazem ideia do que se trata tal como conhecer quase todas as doenças existentes e ainda os tratamentos disponíveis; como saber dizer, de cor, o valor das pulsações, da tensão arterial, o nível de colesterol, de glicemia e de hemoglobina; como ir ao médico e trocar opiniões sobre a origem de determinado sintoma; como saber distinguir entre artrose, artrite e fibromialgia. Já para não falar na gestão de stocks de comprimidos na carteira, na assiduidade em frente à televisão para assistir ao House ou ao Serviço de Urgência, nos sites de medicina que enchem os favoritos. São horas desperdiçadas a aumentar o conhecimento sobre temas que apenas servirão para exacerbar a mania de que o corpo nos trai a qualquer momento. Viver a imaginar doenças é direccionar o nosso poder fantasioso para pensamentos ocos e sem qualquer valor acrescentado para o bem-estar físico e mental.

Mas agora que sei que Marcel Proust não se viu impedido de escrever só porque sofria de doenças imaginárias, me sinto muito mais enquadrada numa realidade que, não sendo de todos, é, pelo menos, de algumas mentes brilhantes. E parafraseando aquele escritor francês remato este post dizendo que "Para tornar a realidade suportável, todos temos de cultivar em nós certas pequenas loucuras."

10.2.11

Amar o amor!

Gosto de amar o amor, de me desvanecer no seu abraço. Gosto do amor forte, do amor arrebatador, quente, capaz de debelar a respiração. Gosto do amor avassalador, tirano da alma, alienador. Rejeito o amor piegas, isolado na lamechice, obstinado pelo cliché, preso ao acanhamento e à palidez. Gosto do amor vivo, vermelho, omnipresente; do amor que tudo quer. Não me revejo no romantismo massificado, dos jantares à luz de velas num qualquer lugar-comum, das rosas vermelhas entregues com cartões fabricados. Gosto da surpresa, do tremor, do inesperado, de oferecer vassalagem a um amor que se oferece à imensidão. Não me convencem com frases feitas e ideias de outros mas conquistam-me irremediavelmente com a originalidade nas palavras, a criatividade na paixão, a singularidade nos actos. Gosto do amor que se vê só de ser sentido, do amor que jamais se esquece mesmo que fenecido.

31.1.11

Agitação!

Saio de casa demasiado tarde. Trago comigo uma pilha de nervos e dirijo-me apressadamente para o carro que dormita na garagem. Tenho uma reunião daí a pouco e estou furiosa pelo atraso que carrego. O despertador, que deveria ter tocado pelas 7:30h, emudecera e se não fosse o meu relógio interior, ainda estaria enroscada nos braços de Morfeu.

Coloco a chave na ignição e escuto o som de aviso de falta de combustível. « Só me faltava mais esta!» pensei para mim enquanto contabilizava os minutos a mais que iria perder a encher o carro com o seu alimento. Sem gastar mais tempo, apuro a manobra e, em dois minutos, já me encontro na estrada. O meu pé direito assenta com precisão no acelerador, afundando-o até sentir o tapete. Ouço música e faço o meu zapping habitual pelas várias estações de rádio, que nunca me satisfazem. As minhas mãos seguem apoiadas no volante mas o resto de mim já não se encontra ali pois voei com os meus pensamentos. Conduzo em piloto automático e somente o frio me faz reagir com um tremor de corpo inteiro. Ligo o ar condicionado e, de pisca ligado, abandono a estrada para ir ao encontro da bomba de gasolina.

O carro marca 7ºC e a humidade cinzenta apela a que vista o casaco. As minhas mãos gelam assim que entram em contacto com o exterior. Não penso no frio, pois a pressa impera, e selecciono a quantia de combustível que considero suficiente para as necessidades calóricas dos próximos dias. Enquanto a gasolina entra no depósito, enchendo o ar com a sua fragrância enjoativa, deixo-me levar novamente pelo alheamento.

De repente os meus olhos emitem um aviso. Algo se estava a passar. No interior da bomba de gasolina avisto um sujeito de comportamento estranho. Passeia-se, aparentemente ao acaso, pelos corredores da loja exibindo um olhar sinistro e uma atitude bizarra. A empregada revela-se inquieta e, para além dela e do indivíduo, mais ninguém se encontra no interior do estabelecimento. Assusto-me ainda mais quando percebo que no seu exterior apenas me encontro eu e o meu carro. Apenas eu... a uma hora de ponta! Os arrepios de frio tornam-se quentes abraçados pelo medo que cresce à medida que redobro a minha atenção. Consigo visualizar um outro homem que ao longe me observa. «Mas será possível que não chegue mais ninguém??!!!» é o único desejo que consigo extrair do meu cérebro contraído enquanto tento ganhar tempo apesar do depósito se encontrar, há muito, cheio.

Ainda que tenha a minha adrenalina em fase crescente tento refrear a minha ansiedade. Aproxima-se a hora de ir pagar e o nervosismo opõe-se à incerteza de poder estar a sucumbir aos caprichos da minha imaginação. Hesito entre acreditar que nada se passa e ouvir o meu eu primitivo que, qual ambulância em marcha de urgência, me lança um alerta de perigo. O aparente afastamento do homem estranho e a maior serenidade da empregada, faz-me ganhar coragem para fechar o carro e me direccionar para o interior da loja. O sujeito estranho observa os jornais e a empregada sorri-me de forma nervosa. Digito o código do meu multibanco recorrendo à memória automática e de soslaio não perco o homem de vista. Este, parece ter encontrado uma revista digna da sua atenção e folheia-a com curiosidade. De talão na mão e após ter ouvido o habitual «Obrigada e boa viagem!» saio o mais depressa que as minhas pernas e o meu bom senso me permitem. O homem do exterior observa-me agora a maior distância e eu, rapidamente, me agarro ao volante e volto a dar uso à chave. Na bomba ao lado já se encontra outra pessoa que abastece. Os capítulos seguintes sucederão com ela. Eu já me encontro novamente no asfalto.

30.1.11

Domingo!

Dia de dormir até tarde, de enganar o relógio e de espreguiçar na cama; dia de fazer máquinas de roupa, as claras, as escuras, as que debotam e as que não se misturam; dia de trocar lençóis para à noite escorregar os pés pela roupa lavada; dia da família, do almoço fora de portas, de encher as esplanadas; dia de alinhar com a inércia e com ela brincar ao jogo do quem faz menos; dia de lavar o carro, aspirar os tapetes e rezar para que não chova; dia de compras de última hora em supermercados repletos de gente que passeia; dia do filme cliché, da manta pelas pernas e do culto ao sofá; dia de fazer um bolo para o lanche, de adiantar as refeições da semana, de planear o que se gostaria de delegar; dia do fato de treino, da roupa prática, dos olhos sem pintura; dia de passar a ferro e de entrar em guerra com o monte de roupa; dia de ler, de fazer palavras cruzadas, de tentar o sudoku; dia de ir à missa, ao mercado de antiguidades, à feira de artesanato; dia de passear com rotações baixas; dia de injuriar as segundas-feiras e cobiçar o entardecer das sextas...

De outros Invernos

O Inverno, à partida, rouba-me emoções negativas. Quem sabe se pela sua má fama, ou se por que sirva, demasiadas vezes, como metáfora de velhice ou de fenecimento de algo. Por isso, tenho defendido sempre o Verão em detrimento daquela estação. É verdade que prefiro quando o mercúrio ultrapassa os 25ºC e o calor se sente de forma apaziguadora mas, é igualmente verdade, que o frio, quando suportável, não é uma realidade assim tão medonha. Afinal de contas, há sol no Inverno e há chuva no Verão e se algo tenho aprendido é que relativizar as situações é quase sempre uma estratégia inteligente. Talvez por este motivo me comece a conciliar com os dias frios e com a menor liberdade imposta pela chuva. Talvez seja por isso que me dê cada vez maior prazer passear pelas ruas arrefecidas enquanto o sol, acanhado, me aquece os cabelos e me obriga a franzir os olhos. Acho mesmo que por isso me consigo sentir bem numa tarde, facilmente, apelidada de feia mas cuja fealdade não se entranha porque o meu coração não a sente.

28.1.11

Retrato de uma consumista

Hoje, à hora de almoço, fui visitar o IKEA. Levava como objectivo comprar uns vasos que albergassem as minhas recém-chegadas plantas. Ao mesmo tempo, iria aproveitar para deixar os meus olhos passearam pelas novidades ou por aqueles produtos que, não sendo novos, são tão giros que merecem ser vistos e revistos até à exaustão. Como ingénua que, ainda, sou, fui de mãos a abanar significando isto que não levava comigo qualquer utensílio com o propósito de carregar os meus objectos de desejo. Bastar-me-iam os meus dez dedos para transportar as (poucas) coisas que, com certeza, iria trazer. Afinal de contas, os vasos que pretendia comprar até eram leves e eu, mulher determinada, iria facilmente resistir ao piscar de olhos das novidades.

Ora, qualquer consumista e apreciador de decoração para o lar sabe que o IKEA é irresistível. Há um não-sei-bem-o-quê na sua atmosfera que magnetiza a vontade, tiranizando-a e mantendo-a refém da capacidade de sedução dos objectos expostos. Nunca vi garfos, copos e panelas serem tão eloquentes como naquele espaço. Parece que me falam e que lutam entre si por se tornarem íntimos da minha atenção. Se me concentrar quase que lhes reconheço a voz no seu segredar ao meu ouvido.

Num rompante, esta capacidade de persuasão conduziu a que as minhas duas mãos se mostrassem insuficientes para carregar todas as coisas que já levava comigo (e que de repente me pareciam da maior urgência doméstica) levando-me a recorrer ao, sobejamente conhecido, saco amarelo. Este, assentou no meu ombro na sua forma folgada mas, com o deambular pelos corredores, foi perdendo o ar do seu conteúdo para se encher com os mais variados objectos tendo duplamente atingido, no momento em que me dirigi à caixa de pagamento, o estado de balofo e a categoria de peso pesado magoando o meu ombro que, de pele rosada, passou a vermelha.
Agora nem tão cedo lá regresso. Tenho o ombro a latejar, a carteira a reclamar e os armários tão cheios que, se falassem, pedir-me-iam misericórdia.